sexta-feira, 24 de outubro de 2025

O Ofício no Limiar


Essa noite, visitei o avesso de uma praia.

No verdume líquido, um homem rompia as ondas —
inteiro, um corpo sem linha de corte.

Retornava, contido, abraçado a uma fartura
e a depunha, prateada, sobre a brancura crua
de um lençol na areia.

Quando o mar o chamou de volta,
reconheci-o: era a mão fundadora de meu pai.
Entrava nas águas sem rede, sem artefato —
apenas ele:
o corpo como âncora e como cova
de onde a vida vinha.

O cardume, em seu colo, rendia a insônia do oceano.
Dormiam, sossegados, os peixes
na paz do músculo.

Em roda, os homens apertavam o pano de linho,
louvando a graça selvagem do pescador.
Os curiosos, com a avidez do mundo:
“Posso levar a prata viva do xaréu?”
“Posso ficar com a moeda do robalo?”

Minha mãe se fez presente —
o olhar, um juízo.
E nós dois, testemunhas de que o antigo ofício,
a técnica do sonho,
estava enfim reconhecido.

Meu pai, generoso e exausto, acenava.
Deixava que a virtude o esvaziasse de matéria,
levada por mãos humanas como nós,
anônimas e famintas.

Sobrou o miúdo, o despercebido.
Minha mãe o recolheu no cesto de palha:
“O que resta é para nós.”

Meu pai voltou ao útero salgado,
prometendo outro milagre.
Desta vez, fui atrás —
não para ver,
mas para me molhar na ciência.

A luz da praia começou a se desfazer,
e eu lutei contra a morte impiedosa do acordar.
Já domino o olhar que admira.
Resta descer no corpo para aprender o mar.


quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Essa noite visitei uma praia diferente.

No mar, um homem enfrentava as ondas

de corpo inteiro —

e saía abraçado a muitos peixes,

que deixava sobre um grande lençol

estendido na areia.


Quando voltou ao mar,

o pescador era meu pai.

Entrava nas águas de novo,

abraçado aos peixes,

tirando-os do mar com o próprio corpo,

e nada mais.


Os peixes sossegavam

nos braços do meu pai.


Pessoas se juntavam em volta do pano 

para ver o bom trabalho do pescador:

peixes que, em seu colo, dormiam.


Os curiosos começaram a pedir:

“Posso levar o xaréu?”

“Posso ficar com o robalo?”


Minha mãe se aproximou

e apenas olhou.

Ela e eu estávamos contentes —

a técnica e o ofício do velho

enfim reconhecidos.


Meu pai, generoso,

deixava que todos levassem a pesca:

mais uma virtude

louvada por todos.


Sobraram apenas os pequenos,

que minha mãe pôs no cesto:

“Até que dá pra nós.”


Meu pai voltou ao mar,

disse que pegaria mais.

Dessa vez fui atrás —

queria aprender.


A praia começou a se apagar.

Lutei para não acordar.


Já sei admirar.

Resta aprender.

terça-feira, 7 de outubro de 2025

Este homem

 

Este homem
Já não tem casa

Do homem de antes
Ficou a casca
No chão

O homem que veio
Fluiu -
Sem vão

Foi à rua:
Ruiu

O homem inteiro
Partiu