quarta-feira, 23 de julho de 2025

Eu não te beijei, Gabriela


Eu não te beijei

na rua em frente ao prédio,

jogando vôlei na chuva — só nós dois —

enquanto os outros correram para dentro,

com medo de se molhar.

 

Não te beijei na piscina do Hotel dos Pinhos,

quando você queria que aquilo fosse

nossa lua de mel.

Mas que lua de mel, Gabriela?

Viajávamos com os pais da Letícia.

Lá em casa, o aviso:

“não fiquem a sós.”

Qual era o tamanho do risco?

 

Não te beijei no cinema,

naquele filme bobo do casal que ganhava na loteria

e perdia o amor.

A gente nem entendia de dinheiro.

Nem idade tinha pra entrar naquela sessão.


Não te beijei na escola —

teu nome bordado nos meus cadernos

feito quem marca o que já é seu.

Te vi como mulher,

e eles,

alguém levando pela mão

um menino assustado.

O que você viu naquele rascunho de gente?

Você tinha um poder enorme sobre mim —

só não sabia como me beijar.

E eu não sabia se sua presença me protegia

ou me predava.

Em meio a tantas declarações,

eu temia os seus segredos.

 

Não te beijei no pique,

nem no gato-mia,

nem no esconde-esconde —

onde quem não saía da sombra,

quem nunca se revelava,

era eu.

Mas como eu desejava

um lugar secreto só pra nós dois,

uma vontade enorme de deixar o corpo queimar.

 

Não te beijei no parque,

quando você me ofereceu sua maçã,

encostou o nariz na minha bochecha,

e sussurrou: deixa.

E eu recusei

a maçã, o beijo, o seu nariz —

por vergonha.

Olhos velavam sobre o meu corpo.

 

Quase te beijei

no banco da praça do bairro,

com as folhas das castanheiras caindo entre nós —

um ano, outro ano, mais um.

Três férias de janeiro

em que você queria ser minha namorada.

No último verão, eu já pensava:

por que a gente ainda não se beijou?

Mas eu não podia admitir

que você me ensinava mais do que meus pais.

 

Não te beijei na rodoviária,

quando você se mudou pra Araraquara.

A gente se olhou como se o mundo fosse sumir —

e sumimos.

 

Seu hálito fresco,

temperado por tomilho e halls preto,

gengivas bem escovadas,

língua vermelha —

o gosto do nosso não-beijo

ficou por muitos anos na minha boca.

 

E quando beijei,

não era assim.

Não era Gabriela.

Eu mesmo era outro.
.

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